27 de abril de 2010

José Saramago: Discurso proferido em 1998, Prémio Nobel



De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.


Ler aqui todo o discurso

Por JOSÉ SARAMAGO
Estocolmo, 7 de Outubro de 1998

20 de abril de 2010

Felizmente há luar: tópicos de estudo


Para estudar para o teste, prestar atenção a:


Da web


  • tempo histórico (século XIX) e tempo da escrita (século XX);
  • tipologia das personagens, de acordo com a classe social a que pertencem: povo, nobreza e clero;
  • a denúncia dos delatores: Vicente, Andrade Corvo e Morais Sarmento;
  • o estrangeiro: Beresford e a sua visão crítica do comportamento dos portugueses;
  • a personagem "ausente", Gomes Freire e seu carácter simbólico: apesar de todas as adversidades, não desiste da luta pela liberdade;
  • as personagens femininas, sobretudo Matilde: a fidelidade aos afectos e ideais;  
  • espaço físico, apenas sugerido; espaço social caracterizado pelo carácter das personagens que o "habita";
  • estrutura externa: divisão em dois Actos; estrutura interna: a sequência da acção;
  • as didascálias: marcações, efeitos de luz, som, gestos das personagens, atribuindo-lhe um carácter quase narrativo;
  • a linguagem e estilo: marcas da linguagem oral (exclamações, interjeições, interrogações, reticências); recurso frequente à ironia; metáforas; níveis de língua diversos, de acordo com a classe social de quem intervém;
  • a simbologia do título: a renovação, a esperança na liberdade.

14 de abril de 2010

"Felizmente há luar": uma abordagem inicial


Para compreendermos o significado e a intencionalidade desta peça de teatro, escrita em meados do século XX, é necessário conhecer os acontecimentos políticos dessa época e também aqueles que servem de "cenário" à acção desta obra: Felizmente há Luar de Luís de Sttau Monteiro.

Época: 
  • Invasões Francesas, início do século XIX;
  • Portugal pede ajuda a Inglaterra e é enviado o General Beresford para ajudar a combater os franceses;
  • O rei, D. João VI, fugira para o Brasil;
  • O autor aproveita os factos históricos desta época para retratar os acontecimentos políticos do seu tempo: século XX, década de 60 (Estado Novo, ditadura salazarista).

Classificação genológica (género literário):
  • Pertence ao género dramático, uma vez que é uma peça de teatro;
  • Mas foge aos cânones da tragédia grega, onde as emoções serviam de cenário à condição humana e onde o herói era impotente para alterar a vontade arbitrária dos deuses ou do Destino( recordar o Rei Édipo);
  • Neste drama, Felizmente há luar, o homem também desafia(hybris), mas desafia o poder político, ao pôr em causa a sua legitimidade e a tirania de quem o exerce e representa. Também, por isso, a punição atingirá quem assim actua. Assim se compreende, nesta perspectiva, a inevitabilidade da condenação à morte de Gomes Freire.
  • A intenção é denunciar e fazer reflectir o público/leitores sobre as injustiças sociais e políticas, pondo em evidência estes problemas, numa perspectiva marxista; 
  • Cabe ao(s)autor(es) desempenhar(em) esse papel, através da escrita de intervenção.

12 de abril de 2010

De volta...



De volta ao trabalho, deixo-vos aqui esta proposta musical!





(«...e que o seu perfume suavize o momento.» 
                                         Ricardo Reis)