29 de novembro de 2013

27 de novembro de 2013

Álvaro de Campos: o Poeta Excessivo

Álvaro de Campos é um engenheiro de máquinas: "À dolorosa luz das lâmpadas eléctricas tenho febre e escrevo...".
 

A Brasileira do Chiado

 
1. Fase do Opiário:

Com um único poema, "Opiário", dedicado a Mário Sá-Carneiro: o Oriente, o sonho, a tentativa de "esquecimento"-
«E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
[...]»
 
2. Fase Futurista:
Faz o elogio da civilização industrial e da técnica, das máquinas: -“Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!”. Entra em rutura com o lirismo tradicional  de índole subjetiva. Pretende, de um modo excessivo, fazer a exaltação das máquinas, do Futuro, da civilização moderna, porque é com ela que se  atingirá a perfeição.
E o excesso é sensacionista, "excesso de sensações": "Sentir tudo de  todas as maneiras", de tal forma sentido que conduz a uma espécie de vertigem, em que já não se distingue o sofrimento do bem estar: “Rasgar-me todo, abrir-me completamente,/ tornar-me passento/ A todos os perfumes de óleos e calores e carvões...”. (in Ode Triunfal)

2. Fase Decadentista:
Os seus poemas exprimem uma profunda abulia, um tédio, um mal-de-vivre, a que o sujeito poético chama "cansaço", um "supremíssimo cansaço" e cuja causa ele não consegue identificar: "Não disto nem daquilo,/ Nem sequer de tudo ou de nada...". Essa abulia chega mesmo a exprimir-se como náusea:- "Que náusea de vida!" (in Dactilografia).
Neste momento, vive uma espécie de caos interior, que lhe provoca um profundo sofrimento:- "A minha alma partiu-se como um vaso vazio", uma fragmentação do eu:- "Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir". (in Apontamento).
Além disso, há a expressão de uma incompatibilidade entre a sua própria realidade e a realidade dos outros:- " Não: não quero nada./ Já disse que não quero nada." (in Lisbon revisited); uma recusa em viver o quotidiano que supostamente lhe querem impor, que resulta numa solidão existencial irremediável e procurada:- " Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,/ Firmo o projecto, aqui isolado.(in Dactilografia).
O seu único refúgio é a evocação de uma memória de infância, vivida ou sonhada, como um tempo de felicidade irrecuperável, uma espécie de  paraíso perdido, que ele recorda com nostalgia:- "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/ Eu era feliz e ninguém estava morto".( in Aniversário).
 
Linguagem e Estilo:
Exprimem o caos interior e o excesso, através de enumerações, repetições, anáforas, onomatopeias, aliterações: "Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r eterno!" (in Ode Triunfal). Também o recurso a uma pontuação eufórica: exclamações, interrogações, apóstrofes, interjeições.
Para exprimir os seus estados de espírito "surpreendentes" e excessivos, usa metáforas, comparações: "Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!" (in Aniversário); para a expressão dos conflitos interiores, usa a antítese e/ou o paradoxo: "Nem sequer de tudo ou de nada:" (in Cansaço).
A forma é, igualmente, caótica: estrofes com número de versos variável, ora muito longas ora brevíssimas; os versos, do mesmo modo, têm um número variável de sílabas métricas, de acordo com o seu ritmo interior; não usa rima: verso branco.

18 de novembro de 2013

No Teatro D. Maria II

 
Fomos ver a peça "Pessoa, o grande ausente". E um dos textos ditos foi esta espantosa Carta  de um suposto heterónimo feminino, Maria José.

Átrio do Teatro
Aqui, por Maria do Céu Guerra:

A carta da Corcunda para o Serralheiro
Senhor António:
O senhor nunca ha de ver esta carta. Nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o nao saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto á janella quando o senhor passa para a officina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarella, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquella rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja d’ella mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir á rua e fallar comsigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecel-o de fallar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguem que gostasse de mim como se gosta das pessoas que teem o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e tambem tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguem.
Eu gostava de morrer depois de lhe fallar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe fallar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quiz mal a ninguem. Alem d’isso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove annos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta edade, e doente, e sem ninguem que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me doe, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter – e agora menos que nem vida tenho – gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vae ler isto, e mesmo que lesse nem sabia que era comsigo e nao ligava importancia em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só á janella, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguem que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a familia, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos ás avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a officina e um gato se pegou á pancada com um cão aqui defronte da janella, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janella, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a unica vez que o senhor esteve a sós commigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei á espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar á altura da janella.. passo todo o dia a ver illustrações e revistas de modas que emprestam á minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquella saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu ás vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguem julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distrahida.
Ainda me lembro d’aquelle dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o proprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ella mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi porisso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre á janella, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de rheumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralytica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me acceitar que o senhor não imagina. Eu ás vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janella abaixo, mas eu que figura teria a cahir da janella? Até  quem me visse cahir ria e a janella é tam baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas á vela e a corcunda a sahir pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser.
(…)
- e emfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta? [texto não lido]
O senhor que anda de um lado para o outro não sabr qual é o peso de a gente não ser ninguem. Eu estou á janella todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gosar e fallar a esta e áquella, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui á janella por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saude o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornaes o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e teem baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos medicos, e outros partem para as suas casas aqui e alli, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e ha artigos assignados por outros e retratos e annuncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isso o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janella de limpar o signal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da agua.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de de vez em quando me dizer adeus na rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vae se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe fallou uma vez, que lhe fallou torto porque o senhor se metteu com ella na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque metter-se alguem comnosco é a gente ser mulher, e eu não sou mulher nem homem, porque ninguem acha que eu sou nada a não ser uma especie de gente que está para aqui a encher o vão da janella e a aborrecer tudo que me vê, valha me Deus.
O Antonio (é o mesmo nome que o seu, mas que differença!) o Antonio da officina de automoveis disse uma vez a meu pae que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não ha direito a viver, que quem não trabalha não come e não ha direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar á janella com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralytica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir á vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor Antonio, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Ahi tem e estou a chorar.

Maria José

7 de novembro de 2013

Alberto Caeiro, o "guardador de rebanhos".

Temática:

Poeta da Natureza e da simplicidade, é o "Mestre", porque só com simplicidade, sem filosofia e sem abstrações se pode apreender o que nos circunda. Daí que todos, inclusivamente os restantes heterónimos, devam imitar Alberto Caeiro.

 
(Foto minha)

Apresenta-se como um "guardador de rebanhos" e o seu rebanho é as suas sensações". É com os sentidos que apreende a realidade que o circunda: - "eu não tenho filosofia: tenho sentidos..."(sensacionismo).

"Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos 
E os meus pensamentos são todos sensações. 
Penso com os olhos e com os ouvidos 
E com as mãos e os pés 
E com o nariz e a boca. "

Rejeita a filosofia, a metafísica, as ciências, em suma, tudo o que apenas serve para deturpar a realidade, a Natureza, tão simples, mas perfeita e, por isso mesmo divina (panteísmo): “Mas se Deus é as árvores e as flores/ E os montes e o luar e o sol,/ Para que lhe chamo eu Deus?”

Linguagem, estilo e forma:

A linguagem e estilo são simples, quase infantis: polissíndetos, anáforas, paralelismos;
-Uso de silogismos(para fingir que não pensa é preciso pensar...): "mas se Deus é as árvores e as plantas... porque lhe chamo eu Deus? chamo-lhe árvores...";
-Sinestesias: mistura de sensações;
-Comparações e metáforas: "Para mim pensar nisso é fechar os olhos/E não pensar. É correr as cortinas/ Da minha janela..."

As estrofes têm um número variável de versos, a métrica também é variável e não usa rima: verso branco: "Não me importo com as rimas. Raras vezes /Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra."

5 de novembro de 2013

Os heterónimos de Fernando Pessoa: o rosto e as máscars.

Autoria desconhecida. Foto minha ,da ARCO, 2010.
David Mourão-Ferreira disse, da criação heteronímica  de Fernando Pessoa, que " a arte de ser, a arte de sentir, a arte de viver é sempre assumida como uma espécie  de 'máscara'; e, quanto  aos  figurantes que as ostentam, eles dão-nos ao mesmo tempo, a  sensação de falar cada um para seu lado e de estarem continuamente a responder uns  aos outros."

in O Rosto  e as Máscaras

E Fernando Pessoa, na carta que  escreve a Adolfo Casais Monteiro, caracteriza assim os seus heterónimos (principais):

"Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida". (sublinhados meus)