21 de outubro de 2013

Fernando Pessoa: Sensacionismo e Interseccionismo

1. A base de toda a arte é a sensação.
Amadeo Souza-Cardoso
2. Para passar de mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada. Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa sensação, e esse facto de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência, isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal — o que dá a emoção artística — essa sensação passa a ser concebida como intelectualizada, o que dá o poder de ela ser expressa. Temos, pois:

(1) A sensação, puramente tal.
(2) A consciência da sensação, que dá a essa sensação um valor, e, portanto, um cunho estético.
(3) A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão.

3. Ora toda a sensação é complexa, isto é, toda a sensação é composta de mais do que o elemento simples de que parece consistir. É composta dos seguintes elementos: a) a sensação do objecto sentido; b) a recordação de objectos análogos e outros que inevitável e espontaneamente se juntam a essa sensação; c) a vaga sensação do estado de alma em que tal sensação se sente; d) a sensação primitiva da personalidade da pessoa que sente. A mais simples das sensações inclui, sem que se sinta, estes elementos todos.
4. Mas, quando a sensação passa a ser intelectualizada, resulta que se decompõe. Porque — o que é umasensação intelectualizada? Uma de três coisas: a) uma sensação decomposta pela análise instintiva ou dirigida, nos seus elementos componentes; b) uma sensação a que se acrescenta conscientemente qualquer outro elemento que nela, mesmo indistintamente, não existe; c) uma sensação que de propósito se falseia para dela tirar um efeito definido, que nela não existe primitivamente.
São estas as três possibilidades da intelectualização da sensação.
1916?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
  - 192.

Interseccionismo
Assim nós temos:
a) intersecção duma paisagem com um estado de alma, concebido como tal.
b) intersecção duma paisagem com um estado de alma que consiste num sonho.
c) intersecção duma paisagem com outra paisagem (simbólica esta dum estado de alma — como, por exemplo, «dia de sol» de alegria).
          d) intersecção duma paisagem consigo própria, operando nela divisão o estado de alma de quem a contempla. Por exemplo: cheio de tristeza contemplo uma paisagem; essa paisagem tem, a par de detalhes alegres, detalhes tristes; espontaneamente o meu espírito escolhe os detalhes tristes (é claro que, em certos estados de tristeza pode escolher os detalhes alegres, mas isso vem a dar no mesmo para a demonstração). Assim dou aos detalhes tristes da paisagem uma importância exagerada; eles passam a formar como que uma segunda paisagem sobreposta ao conjunto da outra, da paisagem real, ou na sua totalidade, ou no seu conjunto menos os detalhes exagerados. Aqui o meu estado de espírito deixa de ser sentido como interior, como paisagem interior mesmo, para ser sentido apenas como perturbação da paisagem exterior.

1914?
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.- 135.

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