4 de maio de 2010

Memorial do Convento: proposta de análise, I Capítulo


Fizemos a leitura comentada, em aula, do I Capítulo do Memorial do Convento.E devemos prestar atenção ao facto de que o título remete para a classificação tipológica desta narrativa: 
  • romance  histórico, que evoca memórias desse tempo histórico passado, em que o Convento de Mafra foi mandado erigir, reinado de D. João V;
  • romance de espaço, se considerarmos que é o Convento que inspira e serve de pretexto para a elaboração desta narrativa.
Topoi (tópicos) a destacar no I Capítulo:
  • o casamento do rei com D. Maria Ana, vinda da Áustria, com o único intuito: o de assegurar a descendência e a sucessão legítima da família real portuguesa;
  • a provável esterilidade da rainha, que não engravidava.
Comentário: repare-se na ironia e na intenção crítica do narrador, heterodiegético, que numa atitude de "omnisciência", se distancia da "sua" narrativa para denunciar os valores predominantes da sociedade -- a eterna "culpa" da mulher, a sua posição passiva e receptiva perante o homem: "vaso de receber", "paciência e humildade da rainha"; em oposição, o homem é caracterizado como o elemento activo e cujo comportamento nunca é censurado: "abundam no reino bastardos da real semente", " cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal". 
Em suma, para que fosse celebrado o casamento entre pessoas de classe social superior (reis, nobreza) não era necessário e seria mesmo dispensável o Amor, porque este sentimento era superado por interesses de vária ordem.
  • a religiosidade fanática: os comportamentos incoerentes, as orações muitas vezes hipocritamente devotas, as promessas que só os poderosos estavam em condições de cumprir, porque eram megalómanas e muito pouco de acordo com a humildade pregada por Cristo;
  • a superstição: afectava os comportamentos quotidianos e confundia-se, frequentemente, com o culto cristão.
Exemplo: a promessa "encomendada" de mandar construir um convento em Mafra, se a rainha ficasse "prenha"; rezar antes, para o caso de morrer durante o acto sexual (eros/thanathos), para que esse "pecado" lhes fosse perdoado- concepção tradicional da culpa associada ao prazer carnal.
  • o poder libertador do sonho que ninguém controla: a rainha sonha com o cunhado depois de ter tido relações com o marido. Mas também o sonho como manifestação das pulsões mais íntimas que assolavam este ser "oprimido", a rainha (reparem na aparente contradição);
Comentário: este sonho tornar-se-ia ainda mais censurável se fosse conhecido, porque era incestuoso, "proibido", um tabu (frequentemente quebrado). O cunhado era um "irmão": "deste sonho nunca dará contas ao confessor".
  • a descrição pormenorizada do espaço físico, luxuoso e sórdido: mobiliário magnífico, mas infectado de pragas de parasitas;
  • a falta de higiene em que se vivia nessa época, mesmo as pessoas de classe social elevada.
Comentário: A rainha tinha um cobertor que tinha trazido da sua terra natal, única recordação  da infância e das suas origens, que nunca lavava, para não o "limpar" desses cheiros da memória perdida (interpretação simbólica); os percevejos que abundavam representam também, a "sujidade" que se esconde por detrás de tanto luxo e magnificência. Simbolizará, em última análise, a ameaça que espera todos os homens, mesmo os soberanos!!, de que o seu fim é igual ao de todos os outros mortais. O espaço físico assume, então, uma representatividade social e psicológica.

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